Daqui a vinte anos

Estou na casa dos 70. Dei à luz aos meus filhos, os criei, vi meus netos crescerem e tenho bisnetos a caminho. A quantidade de cafés da manhã, almoços, jantares e lanches, que preparei na vida, não se pode contar. A louça então que já lavei? Poderia estar no Guinness Book.

Trocas de fraldas, amamentações, noites insones com bebês febris… mamadeiras, papinhas e sopinhas… tempos bons aqueles… como eu gostava de dar maçã raspadinha com a colher àquelas boquinhas agitadas, descobrindo novos sabores e texturas.

Já fiz muita feira, compras no mercado, no açougue… Padaria? Quase todos os dias eu estava lá, e ao chegar à casa, era quase automática a frase: “o pão quentinho chegou.”

Salas de espera de pediatras, filas de vacina e reuniões de pais na escola vinham uma após a outra. Levar crianças ao colégio, buscar crianças no colégio, preparar lancheiras, conferir mochilas… Tornei-me especialista em limpar narizes de onde teimavam escorrer litros daquela coisa viscosa.

Festinhas de aniversário? Como as horas demoravam a passar. Um monte de mães que mal se conheciam tentando interagir-se mutuamente, enquanto seus pequenos corriam alucinadamente em busca de emoção e aventura. Daí seu filho chega perto e diz: “Mãe, segura pra mim.” Ele não pergunta, ele ordena. Daí vem aquele monte de balões que você não tem onde colocar. Daqui a pouco ele volta e diz: “Mãe, guarda pra mim.” E despeja aquele monte de brigadeiros no seu colo.

As noites de tosse eram um verdadeiro martírio. De tempos em tempos tinham de bater o ponto e você tinha que estar lá, de prontidão, usando todos os artifícios para aquela agonia parar.

O tempo passa… amigos dos filhos vêm dormir na sua casa, surgem lágrimas por conta de coisas do coração, solenidades de formatura, cerimônias de casamento… cada fase com suas delícias, com seus espinhos, e eu lá, firme, segurando todas as pontas.

Amo ser quem sou. Amo ser mulher. Amo ser esposa, ser mãe, ser avó. Amo todos os papéis que tive e que tenho nesta vida.

Nesta altura da minha jornada, tenho muitos direitos adquiridos. Direito de ser meio ranzinza, de ter uma memória meio falha, de ter alguém fazendo as coisas pra mim. Direito de fazer o que eu quero e de não fazer o que eu não quero. Gosto de ficar horas visitando minhas lembranças e revivendo momentos que mereciam ter sido eternizados. Na verdade, de algum jeito, eles foram eternizados, pois enquanto eu estiver por aqui, eles estarão comigo.

Nas minhas conversas com Deus, perco noção do tempo. Ninguém além dele me entende tão perfeitamente, tem paciência em me ouvir e compreende meus devaneios. Ele entende quando digo “oh, Senhor, que saudade do Céu”, afinal foi lá que, na Eternidade, Ele planejou a minha vida aqui e a minha chegada lá, na cidade santa, que descerá do Céu, magnificamente enviada por Ele. Minha chegada lá será resultado também de uma espécie de ‘direito’, mas para adquirir o direito ao Céu não tive nenhum mérito. Quem me deu o direito ao Céu foi o Filho, que escreveu meu nome em seu livro, o livro do Cordeiro, e que um dia há de me dizer: “foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor”.

Mas o anseio mais profundo que trago no coração é o de que aqueles que ficarem após mim, quando partirem, tenham esse mesmo “direito”. Se assim for, terá mais que valido a pena cada oração, cada cultinho feito em casa, cada história contada, cada musiquinha cantada, cada lição ensinada, cada disciplina aplicada, cada ida para as reuniões da igreja, cada leva e busca em reuniões das crianças, depois dos adolescentes e depois dos jovens, cada leva e traz em acampamento, enfim… tudo terá valido MUITO a pena.

Fotografia: Unsplash

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8 comentários sobre “Daqui a vinte anos

  1. Já foram tantas fases com tantas histórias…. Todas rápidas, sem direito a bis!
    Tanta graça! Graça de ser criança e correr, graça de correr atrás da criança saída do meu ventre…
    Mas com certeza, a maior graça é o ” direito” da eternidade!

    Curtido por 1 pessoa

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