Uma boa vida

Há cerca de um mês, li sobre uma pesquisa que aponta o Brasil como o país que está no primeiro lugar (em números percentuais) com relação a pessoas diagnosticadas com depressão.

Não entrarei na questão médica, pois não é a minha praia, mas quero tecer algumas elucubrações sobre o tema.

Conheço uma mulher que sofre com esse mal há muitos anos. Muitos mesmo. Seu marido é pastor e acha que ela não precisa ir ao psiquiatra, tomar remédio ou fazer terapia, pois quem vai cura-la é Deus – como se Ele não usasse tais meios para isso. Aliás, meu marido também é pastor e não compactua com a opinião desse irmão.

Conheço uma jovem que foi diagnosticada antes dos 20 anos, e desde então faz terapia e toma medicação. Está com a doença sob controle, tem altos e baixos, mas já aprendeu a lidar com isso.

Conheço uma jovem senhora que foi recentemente diagnosticada. Estava com uma péssima qualidade de vida, na iminência de deixar o trabalho, até que passou no consultório, recebeu diagnóstico, começou a tomar remédio e, em pouco tempo, estava ótima, e retomou as rédeas de sua vida.

Tenho uma forte suspeita de que minha mãe sofria de uma depressão severa. Naquela época, não se falava sobre isso aqui no Brasil, portanto ela jamais teve a ajuda necessária. Sua vida foi difícil. Bem difícil. Seus pais se desquitaram quando ainda era pequenininha, lá nos idos da década de 1940. Depois desse fato dramático, numa época em que desquite era um escândalo descomunal, sua mãe foi assassinada, dentro de casa, na véspera do Natal, pelo pai dela. Sim, o avô da minha mãe matou a filha dele a tiros. Ela e sua irmã um ano mais nova foram levadas às pressas para um quarto quando a confusão começou.

Enquanto o peru estava sendo assado, panelas borbulhavam no fogão, as mulheres libanesas  da família corriam pra lá e pra cá preparando a ceia de logo mais, o caos se instalou naquela casa, naquela família, e nos corações daquelas duas garotinhas indefesas, que não entendiam nada do que estava acontecendo.

Agora não é momento de eu explicar detalhes desse homicídio sabidamente doloso. Quem sabe outra hora.

Fato é que minha mãe cresce sem a mãe biológica, sem o pai biológico e é criada pela tia e seu esposo, que na época não tinham filhos.

Em determinada altura do campeonato, por razões meio nebulosas, as duas meninas foram enviadas para um colégio interno, de freiras, e ficaram lá por uma temporada. Certa feita minha mãe me contou fatos que se lembrava desse tempo lá. Quem sabe uma hora eu conto.

Passa-se o tempo e, aos 16 anos, ela se casa com o meu pai. Um amor incandescente, incontrolável, regado a serenatas e muitos kilomêtros viajados aos finais de semana, a fim de passarem algumas horas juntos.

Em 1963 vem a primeira filha, em 64 a segunda e em 1968 chega o filho varão! Que alegria pela família completa. Só que não foram tão aprazíveis as ondas que desembocaram nas areias daquela praia…

Ali por 1970, quando a seleção brasileira de futebol orgulhosamente erguia a Taça do Tricampeonato, aquele garotinho recebia um diagnóstico duro de ser ouvido por qualquer pai e por qualquer mãe. Dr Rinaldo De Lamare, o pediatra mais renomado do país, explicou que a criança tinha um severo comprometimento cerebral, com significativa perda de cognição, oligofrenia, microcrania, grau severíssimo de autismo entre outras comorbidades.

Outra vez o mundo daquela menina de 22 anos, mãe de três filhos, desmoronou.

O cigarro, da marca Minister, era seu companheiro inseparável. Mais de um maço por dia se esvaía, regado a xícaras repletas de café. Minha leitura hoje é que ela não tinha pra onde extravasar sua dor, então ela fumava e lia. Lia muito. Tudo que era coisa. Desde romances estrangeiros até os livros sagrados de todas as religiões que conhecia. Ela buscava. Buscava e buscava. Ah como buscava! Buscava alento, respostas… buscava um jeito de diminuir a sua dor, as suas dores.

O tempo passou, muita coisa aconteceu, boa e ruim, e para fechar a história [com chave de ouro?], aos 47 anos recebe diagnóstico de câncer de mama, doença que a levou embora desta vida cinco anos depois.

De fato Dona Neuza se arvorava do direito, intransferível, de ter depressão. Que pena que naquela época não se soube disso… que não haviam ainda “inventado” os prozacs da vida, que ser atendida por um psiquiatra ou por um psicólogo era uma vergonha. Quem sabe de posse desses meios ela não teria morrido tão nova.

Especulações à parte, surge aqui a grande questão: depressão é DOENÇA, F32 é o seu CID, e é doença que precisa ser tratada, assim como se trata diabetes ou hipertensão.

Não deixe a vergonha, a religião, a ideia de que ‘você é forte e vai superar’ te dominarem. Corra, vá atrás. Busque ajuda profissional. Fique bem. Viva a vida que Deus planejou que você vivesse. Quem sabe assim, daqui a muitos anos, sua filha pode escrever algo sobre você, contando como você foi curada e viveu uma vida longa, repleta de saúde e tirou uma bela foto, no aniversário de 90 anos, rodeada pelos filhos, netos e bisnetos, depois de dar conselhos pra muita gente sobre como viver uma boa vida.

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