“Dar é melhor que receber”. Passei a infância ouvindo esse ensinamento, embora não o compreendesse. E duas situações corriqueiras me faziam discordar dessa frase. A primeira cena ocorreu a vida inteira, toda vez que minha família ia tomar sorvete. Por família, entenda-se: meus pais, o filho mais velho Filipe, eu (a do meio) e a caçula Débora.
Cada um dos três podia escolher um ou dois sabores. Esse era um dos meus momentos preferidos no fim de semana, até porque o calor de Manaus pede algo geladinho. Apesar de toda a minha empolgação, o “tempo fechava” com o tradicional pedido do meu pai, sempre aos 47 minutos do segundo tempo. Na melhor parte do lanche, ele virava pra mim (ou pra minha irmã caçula) e perguntava: “Me dá um pedaço da casquinha?”.
Aff, eu ficava bastante inconformada. Achava que ele fazia de propósito, embora a desculpa ensaiada fosse – coloque um fundo musical dramático nessa fala: “Minha filha, há muitos anos eu não tenho mais amígdalas. Por isso, a casquinha é a parte do sorvete menos agressiva pra mim”. No auge da minha chateação, eu lá queria saber de cirurgia de amígdalas! Eu nem sabia o que era isso.
Falas “mexicanas paternas” à parte, ainda hoje penso que o pedido do Jj (como chamo o José João) tinha sim o propósito de nos ensinar a generosidade. A prova disso era a forma que ele encerrava o assunto, depois de muito lamento: “Isso é pra vocês aprenderem a dividir”.
Pois bem. A segunda situação que me fazia “ir pra guerra” ao invés de ceder era a divisão do frango aos domingos. Domingo era dia de frango assado porque íamos à igreja pela manhã e minha mãe não cozinhava em casa. A briga entre os três irmãos começava já no carro, minutos antes de chegarmos ao restaurante. “A coxa é minha!” – era o que todos bradavam, mas sempre o desfecho era de conflito, dada à presença de apenas duas coxas no pobre frango. Então chegamos à conclusão que deveríamos fazer a “escala da coxa”. Quem perdia num domingo, ganhava o pedaço no outro. Até que naturalmente as preferências culinárias mudaram e a coxa deixou de ser o último biscoito do pacote.
Em contraste ao meu coração egoísta, havia a atitude sempre bondosa dos meus pais. Todos os dias, minha mãe providenciava uma quantidade extra para o almoço, para o caso de chegar uma visita inesperada, algo muito comum na “rodoviária” dos Mesquitas. A casa dos meus pais sempre foi abrigo pra pessoas conhecidas e desconhecidas que precisavam de feijão, um colchão ou um ombro amigo. Além disso, os eventos familiares e da igreja eram tão frequentes que chegamos a batizar a casa de Lucilia’s Buffet, em homenagem à mamãe, a grande organizadora das festas. É ela a responsável pela repetição da frase bíblica: “dar é melhor que receber”.
Continuo com dificuldade de compartilhar a casquinha do sorvete e muitas outras coisas, mas posso dizer que o exemplo cristão do papai e da mamãe Mesquita me salvou da mesquinhez completa. Só posso agradecer a Deus por todos os atos de misericórdia e de bondade que Ele realizou por intermédio dos meus pais e que tanto me constrangeram quando eu olhava pro meu interior. Lembro de questionar o investimento que minha mãe fazia na preparação das refeições, pensando sempre em oferecer o melhor às pessoas. Eu dizia: “A senhora providenciou tudo isso sozinha?”. Ao que ela respondia, com discrição: “Isso é assunto meu com Deus”.
Sem dúvida, hoje reconheço haver uma estranha alegria nas pessoas generosas que me cercam. Quanto mais “perdem”, mais sorriem. Quanto mais abençoam, mais sentem gratidão. E elas não desperdiçam minutos preciosos com disputas, porque têm muito assunto pra falar com Deus.
Amei o equilíbrio entre a leveza do texto e o peso de um assunto tão importante! ❤️ Obrigada por deixar a gente ler um pouco de ti.
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Tenho vivido isso,dar é melhor do que receber.
Lindo texto e divertido essas histórias hahaha
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Que legal! Fique com vontade de conhecer seus pais!
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